Hoje, vou dar visibilidade a uma pauta importante. Não vou dar voz, pois isso ela já tem e é potente. A coluna dessa edição não é assinada por mim: vamos falar sobre uma Odontologia branca. Leia com calma, pois são sílabas, palavras, que vão ecoar em você.” (Felipe Rossi).
Cresci nos anos 90, vendo apresentadoras de TV e bailarinas brancas, loiras. Nem mesmo nas aulas de arte da escola, me recordo de ter feito algum desenho ou pinturas com personagens pretos. Com a maturidade, percebemos que referências, personalidades e personagens pretos nos foram negados desde a infância. É automático uma criança sempre querer ser igual a alguém, um personagem de desenho, de um filme, um herói de quadrinho.
Quando criança, meu herói não tinha capa; ele usava branco, era dentista e preto. Meu tio foi o primeiro dentista preto que vi e tive contato e, até hoje, um dos poucos que conheci. Lembro-me, muito bem, de sempre falar que queria ser igual a ele, pois sentia que poderia ser igual — me sentia representado de verdade. Demorei a entender que ele foi uma referência para mim, e que referências como ele deveriam ser mais comuns, tendo em vista que 55% da população brasileira são pretos ou pardos, de acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE.
Infelizmente, vivemos em um país em que a maioria da população preta está à margem da sociedade e distante de posições profissionais. Essa falta de representatividade se mostra, também, nas universidades e cursos de Odontologia, onde somamos 2 ou 3 negros em turmas de 40 alunos ou mais. Algumas pessoas vão dizer que a questão do preconceito e representatividade pode parecer aquele velho “MIMIMI”.
Mas você ter alguém em quem se espelhar, alguém para te apoiar numa jornada e não se sentir sozinho, é de extrema necessidade, tanto para os negros se sentirem incluídos, quanto para os brancos perceberem que diversidade racial existe. Grande parte dos dentistas pretos do país passa, ou já passou, por experiências em que ele parece ser a única pessoa preta (em um congresso, por exemplo).
Mas não se engane, essa sensação não é de ser um privilegiado por ser o único, e sim de solidão, um vazio em constatar que você não é representado em nenhuma das áreas da profissão que você escolheu. De palestrantes a representantes das grandes marcas, raros são os acadêmicos pretos; e, quanto menor ou mais elitista o congresso, menor a quantidade de profissionais pretos.
Você já se perguntou o por que disso? Talvez não, até porque a Odontologia se apresenta predominantemente branca. Nos comerciais, os dentistas e pacientes são brancos, e até mesmo a recepcionista — que na grande maioria das vezes é uma mulher negra —, dessa vez é branca! Em nossa vida clínica não é tão diferente das propagandas. Em nossos consultórios, quando nos veem, dentistas negros, de jaleco, somos confundidos com auxiliares, recepcionistas ou estagiários.
Quantas vezes passamos pela situação do paciente, sentado na cadeira, com cara de espanto, nos perguntar se somos mesmo o dentista!
Somos muitos, de todas as especialidades, e estamos lutando para ter mais espaço. Ainda que isolados e espalhados pelo país, iniciativas como a da UNOP – União Nacional de Odontologia Preta (@unoppreta) nos colocam presentes para a sociedade, mostrando que estamos, sim, à frente na profissão! Hoje, vejo a importância da nossa representatividade para a população preta, mas principalmente para as crianças pretas.
Do mesmo jeito que fui inspirado por um dentista preto, sei que podemos e estamos inspirando outros a serem como nós. É extremamente gratificante quando, em nossos consultórios, um paciente não chega apenas mostrando os dentes, e sim mostrando um sorriso, com a alma repleta de felicidade por ter se visto, além do próprio reflexo no espelho. É assim que vamos continuar, cuidando e inspirando, para que o sonho, que um dia foi nosso, se torne realidade na vida dessas crianças.
As cotas raciais nas universidades, por exemplo, são uma importante política pública que, ao contrário do que muitos pensam, não nos inferioriza, e sim nos concede a devida oportunidade de que precisamos.
Além disso, seria muito importante que as propagandas fossem inclusivas, mostrando mais corpos pretos nos seus anúncios embranquecidos. Seria transformador, também, se as empresas e clínicas se mobilizassem para contratar mais profissionais pretos e, assim, contribuir para mudar a “cara” dessa Odontologia predominantemente branca, transformando-a em uma Odontologia mista.
Dessa forma, eu afirmo que, se você não tem visto muitos dentistas pretos, se prepare, pois estamos chegando aos montes!