Oswaldo Scopin de Andrade
Mestre e Doutor em Prótese Dental pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade Estadual de Campinas (FOP-Unicamp), Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Odontologia Estética do Centro Universitário do SENAC, São Paulo, e Editor-chefe do Journal of Clinical Dentistry and Research (JCDR), da Dental Press .
Qualquer procedimento odontológico é um conjunto de processos, isto é, uma sequência contínua de operações que apresentam certa unidade e que se reproduzem com alguma regularidade, de maneira ordenada e precisa.
Um procedimento odontológico parece complexo? Não parece, é. Entretanto, devido à repetição de toda e qualquer técnica ou método que um clínico ou técnico em prótese dental (TPD) realiza, o procedimento odontológico de rotina, com o tempo e com a repetição do processo, começa a parecer simples.
Esse mecanismo de repetição, em qualquer área do conhecimento humano, faz, dessa maneira, o profissional mais confiante, experiente e, consequentemente, familiarizado com determinado método, se tornando, dependendo da qualidade do procedimento, um especialista (expertise) em determinada área.
O domínio e o aprimoramento de uma técnica até atingirmos a excelência é o que guia o ser humano até chegar ao “Nirvana profissional”.
Bem, poético e soberbo! Mas temos um fator que é determinante antes de se atingir essa meta. E é nesse ponto, ou fator, que temos que nos concentrar!
Em março de 2017, o maior acidente aéreo do mundo completou 40 anos. Esse acidente, que vitimou 583 pessoas, marcou a aviação mundial e, consequentemente, toda a humanidade. Não entrarei nos pormenores dessa tragédia, detalhada em livros, reportagens, especiais televisivos e incontáveis citações na internet. Mas não posso deixar de citar alguns pontos cruciais que são importantes em nossa vida profissional como dentistas, técnicos em prótese dental, enfim, como profissionais da saúde.
Após a análise dos dados e extensas investigações, o resultado das perícias (mais de uma!) apontou diversas causas para o acidente; o surpreendente é que todas estão relacionadas a fatores humanos. Entre as principais, estão as falhas de comunicação entre os pilotos e com o controle de tráfego aéreo, erros na pronúncia do inglês por parte dos controladores, cansaço dos pilotos e até problemas de relacionamento pessoal entre os pilotos da companhia aérea.
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Agora substitua a área de atuação e venha para a Odontologia; em vez de comunicação entre os pilotos e os controladores, imagine os erros de comunicação entre dentista e TPD; pense no cansaço dos pilotos como o estresse de um ceramista fazendo um laminado cerâmico até às duas horas da manhã, após mais de vinte horas de trabalho; acrescente a isso um dentista com problemas financeiros, de saúde ou mesmo pessoais, realizando um procedimento complexo às 19h00, após um dia de trabalho intenso, sem ter feito o planejamento financeiro adequado, sabendo que está “perdendo” dinheiro com o caso.
O exemplo desse acidente aéreo serve como referência para muitas análises de processos, de aprendizado e melhoria profissional, e como atitude de como “ser humano”.
Após esse acidente, os órgãos internacionais de aviação estabeleceram diversas mudanças de procedimentos, desde melhorias no treinamento dos pilotos e controladores de voo, incluindo avaliação psicológica, até testes mais rigorosos de domínio da língua inglesa. Essas mudanças fizeram com que a aviação se tornasse um meio de transporte mais seguro para milhões de pessoas nos cinco continentes.
Mas voltemos à Odontologia.
Tenho focado em desenvolvimento da tecnologia CAD/CAM (Computer-Aided Design/Computer-Aided Manufacturing) há quase 10 anos, com visitas a empresas, laboratórios de prótese dental e clínicas em vários locais do mundo, além de estar presente em diversos eventos. Em minha clínica privada, utilizo radiografia digital, scanner intrabucal, fresadora e tudo que envolve essa tecnologia que, se bem utilizada, torna-se produtiva.
Há dois pontos que podem ser elucidativos. Um deles é que essa tecnologia é “vendida”, na maioria das vezes, como um sucessor do laboratório de prótese — isto é, a máquina substituindo o TPD —, e que, assim, fará o dentista cometer menos erros, causando menos problemas e passando a ter mais rentabilidade. Outro ponto é que a tecnologia digital (que é uma realidade e eu não discordo) simplifica processos e minimiza erros, o que em parte é verdadeiro, no meu entendimento.
Há outros elementos importantes, mas esses dois pontos me permitem finalizar minha linha de raciocínio em relação ao tema proposto para esse editorial. Como mencionado acima, no acidente aéreo, o fator humano deve ser considerado, em ambos os pontos de discussão. É importante salientar que, mesmo com a tecnologia, o elemento humano está presente. A máquina produz um “insumo”, uma coroa, por exemplo, que de nada adianta se o preparo não for adequado e a cimentação for feita de maneira incorreta.
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A tecnologia CAD/CAM está no meio do processo! O fator humano existe e deve ser levado em consideração; nesses dois passos, por exemplo, o preparo dental e a cimentação, além, é claro, do conhecimento técnico no desenho digital e na finalização pós-fresagem. O processo deve ser conhecido em detalhes; o fator humano não pode ser negligenciado mesmo nos processos digitais, para que o erro seja evitado ou pelo menos minimizado. Para isso, o processo detalhado de todas as partes de uma operação faz parte de qualquer tipo de organização, seja uma clínica odontológica ou um fabricante de aviões. Quanto ao fator humano, esse deve ser controlado com atitudes que transcendam o treinamento técnico, mas são baseadas em organização pessoal e profissional. Infelizmente, a educação em processos digitais é totalmente incipiente na Odontologia.
O controle que chamo de TOTAL dentro da Odontologia — isto é, entender todos os passos de um processo — depende de como o profissional organiza o consultório, o laboratório, o planejamento, o custo adequado e real para realizar cada caso, enfim, o “conjunto da obra”. A Odontologia é uma área da saúde feita por seres humanos para seres humanos.
Conhecimento é imprescindível, em qualquer profissão, mas, sem organização, esvai-se, perde-se rapidamente, causando decepção e erros.
Analisando profissionais que conheço, com sucesso longevo e reconhecimento, encontro sempre clínicas organizadas e gerenciadas por pessoas que controlam o estresse de maneira produtiva. Cada dia mais, vejo conhecimento controlado e bem aplicado como fator de sucesso, não importando a presença ou não da tecnologia.
*Publicado originalmente na Journal of Clinical Dentistry and Research (JCDR)